quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

morada sem pai.

Há algum tempo, não sabemos quanto, este edifício que aí vemos, imposto de repente no centro da cidade, como que insurgido num levante de distração dos que caminham sem olhar por onde andam, e, por isso, muitas vezes se perdem sem ao menos se darem conta disso, esta construção foi um lugar de convivência, ou de conveniência, como muitos preferem, de gente que devia ser importante, pois rumavam até ele e, suspeitavam, circulavam por ele com várias resmas de papéis debaixo do braço e um enorme livro que impunha respeito pela aparência da capa, de couro negro com um título dourado escrito O Livro, e pela grossura do tomo, que visto rapidamente, aparentava possuir mil e uma páginas. O que havia escrito não devia ou não parecia ser segredo, mas, se por acaso ou descaso uma folha do livro ou o livro por inteiro caísse no chão, inevitável seria que isso chamasse a atenção de um transeunte, seja pela folha que se atirara contra seu rosto e tapara sua vista ou por uma topada com o calhamaço que lhe atravancara o caminho; e se, por caridade ou curiosidade, ele tomasse nas mãos o material e, numa olhadela sem compromisso, apenas por questão de segurança, para saber o que carregava em mãos, tentasse decifrar o que tudo aquilo significava, nada entenderia, nem ninguém, por mais que o observasse, este prédio.

Não sabemos se o ponto é histórico, e pelo desconhecimento de sua história oficial, acumulam-se várias histórias ao seu redor, mas nenhuma que ouse entrar, pois nos registros municipais, nenhum dado mais preciso é encontrado a seu respeito. Há uma coisa aqui, outra ali, e a pouca informação que se tem soa duvidosa e contraditória. A memória coletiva, então, permeia-se de mitos.

O edifício aí está, desde sempre. Hoje, no meio desta cidade, como um imenso obstáculo impossível de ser ignorado, penetrado, eliminado ou ultrapassado, apenas passível de ser desviado. Nenhum plano diretor municipal ousou trocá-lo de lugar. Sua estrutura e arquitetura estão mantidas. Digo mantidas no sentido de que ninguém se preocupou, se ocupou ou se arriscou a modificá-las, deixaram tal ousadia a encargo do tempo, que até hoje apenas foi responsável pela indefinição da cor da fachada. Ninguém tratou de tombar o lugar como patrimônio histórico, pois o conceito de patrimônio histórico defendido pela legislação foi votado em assembleia e não está passível de ressignificação, mas há, sim, uma lei velada que põe como crime impensável e impraticável sua demolição, pois o único prefeito que até hoje ousou proferir um discurso que, embora vago, dava a entender isto, foi alvo da única manifestação pública de que temos notícia nesta cidade.

Certa noite, um morador de rua, que não sendo a rua uma morada, não é ele, portanto, morador, sentiu um frio maior do que todos os outros frios de todas as outras noites e foi descoberto por uma brisa que lhe retirou o edredom de papelão recém-adquirido e banhou-lhe com uma chuva fininha, mas nem por isso pouco inconveniente, pois cada gota sobre seu corpo quase nu o expulsava de onde estava sem o convidar a mais nenhum outro lugar, pois chuva com vento bem sabe perseguir quem dela tenta fugir. Sua opção, que não era opção, mas sua saída, entrada, na verdade, foi refugiar-se no prédio, bendito prédio para ele, que, por um lapso, chegou a chamá-lo de abrigo, abrigo tão-somente, pois o sentimento de lar lhe era impossível, o prédio não deixava, tanto que o homem não voltou a dormir. Encostou-se no parapeito de uma das grandes janelas sem vidro que havia no térreo e ficou a observar a chuva que não mais lhe alcançava. Tão pronto a chuva cessou, ele não teve outra alternativa, ou vontade, que não a de voltar ao pedaço de realidade que lhe pertencia.

Na outra noite, antes de deitar para dormir, resolver espiar o prédio, tentando puxar pela memória as poucas horas que ali passara, mas não se lembrava de muita coisa. A única imagem que lhe vinha era a da chuva que ficara observando. Percebeu, pois, que a melhor visão que tivera quando estivera dentro era justamente a visão de fora. Não, não podia ser possível tanto mistério envolvendo este ambiente, plantas especuladas por arquitetos, fotos imaginadas por jovens na escola e quadros pensados por velhos nas praças, toda uma exposição de sonhos envolvendo a alma daquele lugar, um universo para além do esqueleto assombroso que ficava à mostra e ele, que tivera a oportunidade de explorá-lo, havia desperdiçado toda sua contemplação com a rua. Estava tudo escuro, não ia dar para ver nada mesmo, tentava um autoconsolo, mas não, era imperdoável, melhor que ninguém soubesse de sua imbecil expedição, seria um Odisseu que sobrevivera mas estaria morto?

As janelas do prédio não tinham vidraça alguma e, por isso, não entrava luz. Então, de fora, ele também não pôde ver nada, mas ouviu barulhos rosnados grunhidos gemidos murmúrios uivados, não se sabe se de gente, não se sabe se de bicho, não se sabe se de coisa. Olhou para os lados, como se alguém se ocupasse de observá-lo, e arriscou um pulo para dentro do prédio. Tudo era breu. Cego como estava, saiu de quatro tateando e lendo as paredes com os dez olhos que se punham em cada ponta de dedos das mãos. As pontas dos dedos dos pés eram analfabetas, rudes, e estavam ali apenas para atacarem ou defenderem caso fosse necessário. Cada dedo lia a parede em braille e o homem tinha, então, dez diferentes leituras. Cada dedo lhe dizia uma coisa e o homem se perdia em meio a todas aquelas linhas que não eram retas e o obrigavam a deixar sua posição mais segura e se abaixar e subir de acordo com a direção que cada linha lhe dava. Ele pensou em pronunciar o que estava a ser lido a fim de ordenar seu pensamento, mas teve medo e achou melhor ler num sussurro para si mesmo e, quando o tentou, percebeu que não conseguia. Só lhe saiu um balbucio estranho e nem a escuridão camuflou o brilho dos seus olhos arregalados de espanto? de terror? de êxtase? Subitamente, o branco invadiu suas órbitas oculares por inteiro causando-lhe uma cegueira, agora branca. A brancura vasta que se abria diante de si era promissora e angustiante, causando-lhe um sentimento de liberdade e prisão.

Continuou a ler as paredes e a redescobrir as mensagens, posto que agora via com outros olhos, e à medida que seus braços faziam uma linda coreografia gestual, uma dança sensual, explorando as brancas páginas de tijolos que tinha à sua frente, negros grafemas surgiam à sua mente, preenchendo a página de cal que se impusera visível a ele. Não era alfabeto latino, algarismos arábicos ou escrita japonesa, era algo que se apresentava como incompreensível, incapacitando seu precário letramento de identificar aqueles signos, que não remetiam a qualquer significado ou imagem acústica. E como o branco que ele via não tinha fim, a linha negra se prolongava infinitamente, como se também dançasse, dando nós, voltas, rodopios, enlaces, sem a intenção de capturar nada, tudo muito bem virgulado, mas sem ponto algum até que seus dedos, de tanto roçarem nas palavras ásperas, ficaram dormentes, mas o formigamento não se deteve nas pontas dos dedos; sentiu que um formigueiro nascia dentro de si, na boca do estômago, e se estendia até a boca do pênis, deixando-lhe ereto. Masturbou-se imprimindo-se um ritmo alucinante, como se a mão não conseguisse acompanhar a velocidade do gozo que se aproximava e o fazia tremer, como um prenúncio de uma tsunami devastadora. O jorro saiu impetuosamente, sem que ele tivesse controle da sua direção e o que poderia ser prenúncio de vida foi o seu direito à morte.

trapaçada.

[.desloucamento]

mover-se, penetrar o espaço arrancar sombras espelhadas conhecer o solo, pisar forte, anunciar a queda arriscar o teu salto incerto da ...